Transcrição

LIVRO DE MEMÓRIAS N.º 2

 

Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde

(PT/ADPRT/MON/CVSCVCD/011/0155, fls. 65-70v)

  

(Fl. 65)

 

Noticia do que se passou neste Reyno, depois q nelle entrarão os Francezes, e Hespanhoes

 

No Anno do Nascimento do N. Sn. Jesus Christo de Mil oito centos e sette, Governando este Reyno de Portugal como Principe Regente, o Senhor D. João por impedimento de molestia da Raynha Sua May Senhora D. Maria 1ª; filha do Senhor D. José 1º. e Mulher do Senhor D. Pedro 3º., foy prevenido o dito Senhor Principe Regente de que os Francezes e Hespanhoes pertendião entrar de assalto neste Reyno para se senhoriarem delle, e das suas Americas; e que nesta trayção entravão certo Ministro de Estado, e outros validos no Paço, e alguns Fidalgos. Esta noticia antecipada, que se reputava mentiroza, veio depois a realizar-se por avizo de huma Fragata Ingleza, que entrou em Lisboa, cujo Commandante foy buscar o Principe, e lhe testemunhou de huma maneira tão evidente a inconfidencia, e a trayção, que lhe estava eminente, que o moveo a sahir do Reyno; e antes de o fazer deixou huma Proclamação aos seus Vassalos, em 26 de Novembro do dito anno pela qual lhes fazia saber, com muita ternura, e Amor Paternal, os motivos que o fazião partir para o Ryo de Janeiro até a Paz geral; nomeando huma Deputação de Ministros, que na sua auzencia regessem o Reyno, sendo Presidente o Marquez d’Abrantes.

 

No dia 30 do dito Mez de Novembro do sobredito anno entrou em Lisboa o General Junot Commandante em Chefe do Exercito Francêz com huma Tropa de Soldados, repentinamente; e como a esse tempo já o Principe se achava embarcado no Tejo, com toda a Familia Real, e muitos Fidalgos, e Povo, que o quiz acompanhar, ahy mesmo o foi procurar o dito General Junot, e com muitas promessas o quiz rezolver a tornar a vir para terra, (fl. 65v) dizendo, que de ordem de Napoleão Imperador dos Francezes o vinha proteger, e deffender este Reyno dos Inglezes; pois como tinhão sido expulsos delle, e confiscados os seus bens a Rogos, e Requiziçõens de mesmo Imperador, hera de recear, que viessem fazer-lhe algum attaque por Mar, em desaggravo de os lançarem fora. Mas o Principe, que estava instruido de que a vinda dos Francezes se dirigia contra a Sua Real Pessoa, querendo poupar o sangue dos seus Vassalos, como elle declarou na Proclamação da sua despedida, não quiz annuir aos Rogos do General Francêz, e partio no dia 3 de Dezembro do dito anno, para o Ryo de Janeiro, com a Sua Armada, deffendida por outra Ingleza, que o acompanhou na sua Viagem, a qual fellizmente concluhio com fellicidade, conhecendosse por hum Prodigio do Ceo a inopinada Rezolução com que se animou a passar o Mar, e a bonansa do tempo com que foi favorecido, na Estação do Rigoroso Inverno.

Logo depoys da Sua partida entrou o General Junot na posse, e administração deste Reyno, abolindo, e extinguindo a Autoridade da Regencia deixada pelo Principe, passando a nomear ministros de Estado, Conselheiros, Intendente Geral da Policia, e Corregedores Mores nas Provincias, todos Francezes, espalhando a sua Tropa por todo o Alemtejo, e de Lisboa até Coimbra.

 

Para a cidade do Porto veio huma grande Tropa de Soldados de pé, e de cavallo, Hespanhoes, que se forão dividindo até Valensa, debaixo da Comandancia do General em Chefe D. Francisco de Taranco, e Lhano, dizendosse com prezumpçoens evidentes, que entre a França, e a Hespanha, se tinha ajustado repartir o Reyno de Portugal, e os Brazis, de que houverão indicios muito provaveis, com amargura, e consternação dos Portuguezes, que sempre fazião dolorozas (fl. 66) Lamentaçoes pelo seu Principe. Fallesceo no Porto, o dito General Taranco, e como se tinha comportado com muita politica, honra, e humanidade, lhe fizerão exequias proprias de huma pessoa Real, e foi sepultado na Igreja dos Padres de Santo Eloy.

 

Veio outro General substituilo no Governo, que comprehendia a Provincia de Entre Douro, e Minho, até, que o General Junot declarou que o Imperador dos Francezes mandava, que o Imper digo, que este Reyno fosse todo governado, em Seu nome; e por esta Ordem, e com o Titulo de Duque de Abrantes, entrou no absoluto governo delle.

 

Mandou logo dar baixa, e extinguir todos os Regimentos Portuguezes; e tirar o Armamento a toda a Tropa Milliciana. Mandou, com graves penas, que os todos os Portuguezes entregassem as Armas de Fogo; que não uzassem de paus, e estoques; prohibio o exercicio da caça; os ajuntamentos, e a liberdade de andar de noute.

 

No primeiro de Fevereiro deste anno de Mil oito centos e oito, se publicou hum Decreto em nome do Imperador; mandando, entre outras couzas: Que a casa de Bragança nunca mais tornasse a Reynar: Que os Bens da Coroa, da Raynha, do Infantado e da dita casa de Bragança fossem sequestrados: Que os Bens dos Fidalgos, e mais pessoas que tinhão acompanhado o Principe, fossem confiscados: Que as Pratas de todas as Igrejas fossem para o Erario, exceptuando somente os Vasos Sagrados, e as Coroas, e Resplendores dos Santos: Que Portugal pagasse huma Contribuição de Guerra de quarenta Milhoens de Cruzados: Que os Mosteiros, e mais Corporaçoes Eccleziasticas pagassem trez partes do seu rendimento annual; e os Donatarios dos bens da Coroa, que (fl. 66v) que pagassem o quinto dobrado, alem de outras muitas contribuiçoens que constão do mesmo Decreto. Mandou outra Ordem para se picarem as Armas Reais, donde quer que estivessem, e tomou conta de todas as Rendas publicas do Reyno; e finalmente deu muitas providencias para nao haverem barulhos, levantamentos, e tumultos, mantendo os Povos em pacificação, e permittio Deos, que os Portuguezes se mostrassem humildes, e fizessem Liga Social com os Francezes, e Hespanhoes, dandolhes aquartelamentos, e pagando as contribuiçoens, apezar de serem excessivas.

 

Os Inglezes, estimulados destes procedimentos, bloquearão as Barras deste Reyno, com tanto aperto, que nunca mais houve Commercio; e os Navios, que vinhão do Brazil os levarão para Inglaterra, sem deixarem entrar fazendas, nem mantimentos, com grande consternação, e prejuizo de todos; porem quiz Deos, que os generos da primeira necessidade, como forão o Pão, Vinho, Azeite, e outros viveres não sobissem de preço.

 

No meio de tantas amarguras servia de lenitivo aos Portuguezes ser esta inffelicidade geral entre todas as Potencias da Europa; e sentio este Mosteiro as mesmas penalidades, como forão, entre outras, as seguintes: Entregou as Pratas da Igreja, que pezaram oito centos, e trinta Marcos, Seis onças e quatro oitavas; as quaes forão remettidas, com as mais desta vila, para Barcellos, e de lá forão para a cidade do Porto, ficando a nossa Igreja despojada de toda a sua Riqueza, esplendor, e magnificencia sem Alampadas, sem castiçaes, sem toxeiras, e sem o Alampadario grande que ornava o meio da Igreja e que fazia huma parte principal do seu brilhantismo; alem do thuribulo, e Naveta, Caldeira d’agoa benta, Galhetas, Estantes dos Missaes, frontal, e banqueta do (fl. 67) do Altar Mor, e Commungatorio, e Cruzes, que tudo se entregou por não incorrer nas penas impostas aos que occultassem alguma couza. Pagou esta Communidade trez partes do seu Rendimento annual, em trez pagamentos, importando cada hum trez contos trezentos cincoenta, e dous mil trezentos oitenta, e oito Reiz, e meio, alem do quinto duplicado, que importou nove centos vinte dous mil cento vinte, e quatro Reiz, em trez pagamentos.

 

Ficou esta Communidade na penuria de lhe não ficar de resto no prezente anno, depois de pagas as ditas contribuiçoens, mais, que para as despezas de trez, ou quatro Mezes.

Mandou a justiça picar as Armas Reaes, que se achavão sobre a Porta da entrada da Galilé; e não se picarão as do Dormitorio novo que faz frente para o Ryo, porque os Pedreiros se não quizerão expôr a perigo de vida, pela grande eminencia, e direcção, em que se achão.

 

Hera neste tempo Abadessa deste Mosteiro a Muito Reverenda Madre, e Senhora D. Maria Jozé de Bellem, e Vasconcellos da Caza da Fervensa, que soffreo todas estas oppressoens, prejuizos, amarguras, e falta de pagamentos dos Rendeiros, com muita paciencia conformidade, e Rezignação com a vontade de Deos, mostrando sempre, no meio das maiores vexaçoens, com que foy attenuada no seu Triennio, hum espirito magnanimo, confiando sempre da Divina Providencia o Socorro, e auxilio de que tanto precizava em hum Seculo, em que a maior parte do Mundo foy revolucionada. E para no futuro constar esta verdade, se fez a prezente descripção, que eu D. Luzia Barbara de S. Jozé Escrivãa do Mosteiro subscrevi e assignei.

  

  1. Luzia Barbara de S. José

 

(Fl. 67v)

 

Continuação do mais que aconteceo            

 

Estando este Reyno governado pelos Francezes, debaixo das ordens do General Junot, entrou este a tractar mal aos Hespanhoes, e a multiplicar os tributos aos Portuguezes que gemião às penúrias de hum captiveiro insopportavel, concorrendo para esta desgraça a maior parte dos Ministros, Generais, Governadores, e Officiaes de Guerra, deste Reyno, que ou por medo, ou por vis interesses se tornarão inconfidentes.

 

Os Bispos de Coimbra, e do Algarve; os Marquezes d’Abrantes pay, e filho, o irmão do Duque de Cadaval, e outros Fidalgos de Lisboa partirão, como Deputados deste Reyno, para Bayona de França, aonde se achava Napoleão, a render-lhe Vassalagem, em nome da Nasçao, e a pedir-lhe Rey, visto, que a caza de Bragança se achava abolida; levando para isso huma vergonhoza reprezentação, injurioza aos nossos Legitimos Soberanos, e odioza aos fieis Portuguezes, que para tão horrorozo sacrifício nunca derão consentimento.

 

Ao tempo, que se achavão em Bayona aqueles Deputados, aconteceo na Hespanha huma desordem entre o Rey Carlos Quarto, e seu filho o Principe Fernando, dividindosse o Povo em dous partidos, hum a favor do pay, e outro do filho, até que obrigarão àquele a ceder neste o Reyno, abdicando de si o governo, com o pretexto de molestias, que padecia. Entrou Napoleão a querer ser o medianeiro desta perturbação, e arbitro para julgar a qual dos dous pertencia reger a Coroa da Hespanha; e no entanto mandou seu cunhado Murat intitulado Principe de Berg, que viesse governar a Hespanha, tendo já feito entrar no dito Reyno mais de dozentos mil homens de Tropa, debaixo do nome de boa amizade, e protecção, para poder conseguir as (fl. 68) as traiçoens aleyvozas, que projectava, e que tinha practicado nos mais Reynos que havia conquistado, e destruido por meios injustos, e inconfidencias dos Generais que sobornou para falciarem aos seus Monarchas. Entrando o dito Murat no Governo da Hespanha, deffendido por hum grande Exercito Francêz, com quem se aquartelou em Madrid, passou Napoleão a chamar a Bayona de França, aonde se achava, a El Rey de Hespanha, sua mulher e filhos, e a toda a família Real; e todos illudidos e cegamente alucinados por aquele uzurpador aleivozo, apezar dos clamores do povo, que os não quizerão deixar passar dos lemites da Hespanha, se forão entregar como cordeiros ao Lobo devorador da humanidade, ambiciozo de dominar o Mundo inteiro.

 

Logo, que o impio Napoleão vio em Bayona toda a Familia Real da Hespanha, a mandou recolher ao centro da França separando ao Principe Fernando de seus pays, e pondo a todos em cautella, com guardas á vista, ficando sem Liberdade, e como prezos; consignandolhes certa quantia para o seu modico, e indigente tractamento, com escandalo, de todo o Mundo. Publicou hum Decreto, pelo qual declarou que toda a Familia Real da Hespanha hera inhabil para Reynar, e nomeou a seu irmão Jozé, que reynava em Napoles, para Rey da mesma Hespanha. Com estes procedimentos nunca vistos se irritarão tanto os Hespanhoes, que se levantarão em massa tomando armas contra os Francezes, com quem travarão huma guerra sanguinoza; e ao mesmo tempo se retirarão os Soldados Hespanhoes, que se achavão na Cidade do Porto, levando prezos (fl. 68v) o General e outros officiaes, e Tropa Franceza, que se achava na dita Cidade. Sabendo Junot da retirada dos Hespanhoes, e que havião levado prezos aos seus Generaes, mandava dous mil homens Francezes para guarnecerem a cidade do Porto, e matarem huma grande parte dos seus habitantes, por se não terem opposto ás prizoens feitas pelos Hespanhoes, sem se lembrar, que os Portuguezes tinhão entregado as Armas; e não podião deffendersse, nem rezistir, ainda que o quizessem fazer.

 

Ao tempo pois que os Francezes marchavam para o Porto a toda a pressa, inspirou Deos Nosso Senhor nos coraçoens dos Povos daquela cidade e outras terras deste Reyno, que se resgatassem deste infame captiveiro, escapando á morte cruel, que lhe preparava a impiedade daquela Nasção.

 

Foy nos dias 18 e 19 de Junho do dito Anno de 1808, que todo o Povo, em massa Acclamou na dita Cidade do Porto ao Principe Regente o Senhor D. João 6º, legitimo Successor desta Monarchia, e o mesmo se fez em outras Villas, e cidades das Provincias do Minho, e da Beira, arvorandosse as Bandeiras de Portugal, e renovandosse as Armas da Coroa, e da Serenissima Caza de Bragança em todas as partes, em que se tinhão amortizado: Estabeleceosse na mesma Cidade do Porto huma Regencia, denominada = Juncta Provizional do Governo Supremo = de que hera Prezidente, e Chefe o Excelentissimo Bispo da dita Cidade, a quem mesmo Povo foi procurar, e pedir que quizesse Governar em Nome do Principe Nosso Senhor, o qual de boa vontade se sacrificou a este trabalho, nomeando para Ministros e Conselheiros ao Provizor, ao Vigario Geral; ao Juiz da Coroa, e outros; e para Secretario de Estado ao Dezembargador Manoel Joaquim Lopes Negrão natural do Lugar de Azurara: e todos unidos em consumada sabedoria (fl. 69) e prudencia; amor da Patria, fidellidade ao nosso Amavelissimo Principe, e fellicidade dos Povos, entrarão no Governo deste Reyno desinteressadamente, com geral satisfação de todos. Mandarão organizar as Tropas, e augmentar o numero dellas com innumeraveis Mancebos, que de todas as Provincias se alistarão e tomarão Armas voluntariamente. Como as despezas herão muitas e faltava o Commercio, se pedia a todos os Vassalos hum donativo voluntario; e este nosso Mosteiro, apezar de ter tido muitos prejuizos, perdas e tributos, que pagou aos Francezes, deu quinze mil Cruzados.

 

Acudirão em nosso auxilio os Inglezes com dinheiro, Armas e Gente, que unida á nossa Tropa, e a alguns Hespanhoes, que também nos vierão auxiliar, formarão hum grande Exercito, que marchou para Lisboa, a fim de lançar fora os Francezes, que nella se achavão, commandados por Junot, e tiverão no Caminho varios encontros com alguma Tropa Franceza, que se tinha debandado por differentes Terras, aonde matarão aleivozamente alguns Portuguezes, e commetterão muitos sacrilegios nas Igrejas, mostrando em todas as suas acçoens, e comportamento ser huma Gente sem Religião, sem piedade, sem honra, e sem vergonha. Sahio Junot de Lisboa, e veio em distancia de nove Legoas com os seus Soldados esperar o nosso Exercito, que hia dividido em trez collumnas; e encontrandosse com huma dellas, que se compunha de Portuguezes e Inglezes, travarão combate, no qual forão desbaratados os Francezes, morrendo huns; e retirandosse outros para Lisboa, com Junot, o qual pedio Suspenção d’ Armas por trez dias, para se entregar por capitulação.

 

Entregousse finalmente o dito Junot, com toda a Tropa Franceza, aos Inglezes os quaes os fizerão prizioneiros de Guerra, e os levarão para bordo da sua Esquadra, que tinha entrado no Tejo, fazendo a todos huma rigoroza busca, na qual acharão muitos ouro, prata, e dinheiro, que tinhão saqueado neste Reyno. Logo se arvorarão em Lisboa as Bandeiras Portuguezas, fazendosse por todas as Cidades, e Villas deste Reyno Jubilozas demonstraçoens de alegria, e rendendosse a Deos Sollemnes Graças por nos haver remido de hum (fl. 69v) captiveiro tão infame; e de novamente se tornou a levantar a Regencia que o Principe tinha estabellecido antes da sua sahida, cofiando o Supremo Governo, que a necessidade, e o Povo havião erigido na Cidade do Porto, sendo o Excelentissimo Bispo desta Cidade, nomeado, e chamado para Membro da mesma Regencia, depois de ter dado as mais descididas provas de Sabidoria, prudencia, bravura, e de muitas outras Virtudes com que desempenhou o Emprego de Governador na mesma cidade, que deixou, com hum louvor immortal, e saudade dos Povos, que o respeitavão, e amavão como a Pay da Patria.

 

De todos os mais acontecimentos darão noticia circunstanciada as Historias deste Reyno; porque aqui só fizemos menção dos factos mais publicos e tocantes neste Mosteiro. E eu D. Luzia Barbara de S. Joze Escrivaã do Mosteiro, qual a sobscrevi e assignei.   

 

  1. Luzia Barbara de S. José

Escrivaã  

 

Continuação das Perseguiçoens feitas pelos Francezes

 

Quando os Francezes sahirão de Lisboa forão levados á França por Virtude da Capitulação, que fizerão com os Inglezes, e tornando a entrar na Hespanha entrarão em Portugal pela Provincia de Traz os Montes, tomando a Praça de Chaves; e daly passarão a Braga aonde chegarão no dia 20 de Março de 1809 pela manhaã, mattando, saqueando, e fazendo as maiores barbaridades, que por toda a parte praticarão.

No mesmo dia 20 de Março pelas 5 oras da tarde chegou a noticia daquele acontecimento, ficando todo o Povo espavorido e com o Receio de que viessem a esta Villa; querendo as Relligiosas deste Mosteiro escapar-se á crueldade daqueles inimigos, sahirão em Communidade acompanhadas dos Padres da Galilé, depois de ser noute, e por entre os gritos, e confuzão do Povo, que igualmente se poz em fuga, tomarão o Caminho da Cidade do Porto, que promettia (fl. 70) toda a segurança e rezistencia contra os inimigos.

No dia 21 do dito Mez chegarão á dita cidade a pe, fatigadas, e nas affliçoens de quem fogia da deshonra, e da Morte: as que herão naturaes da mesma cidade buscarão as suas familias; as outras se recolherão em humas cazas do lugar de Massarellos, e propondosse a embarcar para onde se salvassem, recolherão as Pratas e os dinheiros, que havião no cofre em hum Hiate, porem a tempestade, e a furia dos Mares o não deixarão seguir viagem.

Avezinharão-se os Francezes á dita cidade cobrindo-a de fogo, a que os seus deffensores não podião rezistir, e entrarão nella na manhaã do dia 29 do dito Mez aonde succederão as desgraças que todos sabem, e assim eles como os Portuguezes roubarão quanto se achava a bordo do dito Hiate, deixando a Communidade sem recurso de que se podesse manter. No dia antes da entrada dos Francezes tomarão as Relligiosas o destino de se debandarem, pois que unidas em comum, nem tinhão meios de subsistencia, nem aonde se acomodassem, buscando cada huma salvarsse como pudesse pelos Montes, pelas Cabanas, e por onde a Providencia lhes ofereceo refugio; passando a Madre Abadessa com algumas Relligiozas até a Cidade de Aveiro aonde se abrigou.

Os Francezes passarão do Porto a esta Villa aonde chegarão no dia 31 do dito Mez perto da noute e aonde estiverão até 2 de Mayo; mattando na sua entrada algumas pessoas; roubarão todas as cazas da Villa, de que tinhão fogido quase todos os seus habitantes. Arrombarão toda as entradas deste Mosteiro, todas as Cellas, Armarios, e Officinas, roubarão tudo quanto acharão, e auxilliarão, e permittirão, que a gente da Plebe, assim desta Villa, como das suas vezinhanças roubassem igualmente o que os Francezes não podião levar. Logo que despejarão desta Villa no dito dia 2 de Mayo, vierão para este Mosteiro a Madre D. Joanna Ludovina de Vasconcellos, e a Madre D. Maria Cazemira Ferreira Gaio, e suas irmans, a Madre Vigaria da Caza e apoz ellas se vierão seguindo outras, que se achavão em pouca distansia; ate que no dia 14 de Junho se recolheo a Madre D. Abadessa, a Madre Escrivaã, e muitas outras Relligiozas, até se completar a Communidade, em que só faltou a Madre (fl. 70v) Tereza Rita do Amor Divino, que achandosse em caza da sua familia na dita Cidade do Porto, se não deu aly por segura, e no dia da entrada dos Francezes, hindo a passar o Ryo Douro, se habateu a Ponte, e entrou no numero das desgraçadas Victimas que se afogarão naquele Ryo; preferindo a Morte ao perigo de serem sacrificadas á barbaridade dos Inimigos.

Foy no meio de tantas aflicçoens, penurias, e dolorozos acontecimentos que a Madre Abadessa passou o seu Triennio, que logo no principio foy ameaçado de infellicidade com o habatimento do preço das Rendas: Com a falencia do grande Cabedal, que administrava João Lopes Ferraz da dita Cidade do Porto: Com a perda do Pao de Navaes, que não recebeo no seu tempo: Com as contribuiçoens, que pagou para o Estado, alem das que tinhão levado os Francezes; e com outros muitos motivos, que a penalizarão; mostrando em todos os lances, que a paciencia, e a resignação com a Vontade de Deos herão as Armas mais poderozas para vencer, e triunfar das perseguiçoens com que foy attendida. E para assim constar se fez esta declaração, que eu D. Luzia Barbara de S. José Escrivaã do Mosteiro que o sobescrevi e assignei em 7 de Maio de 1810.

 

  1. Luzia Barbara de S. José
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